Os símbolos em Ópera dos Mortos

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Os símbolos em Ópera dos Mortos

Laura Goulart Fonseca.
(doutoranda em Ciência da Literatura, Teoria Literária, UFRJ)


Resumo: Na obra Ópera dos Mortos, de Autran Dourado, a ambigüidade característica do barroco radicaliza-se, a ponto de unirem-se casa e personagem barrocas (o sobrado e Rosalina). O sobrado é a unidade dual entre Lucas Procópio e seu filho, João Capistrano, mas Rosalina, o pêndulo que oscila de um pólo a outro, é a personificação dessa unidade e metáfora da memória. Os símbolos da obra, a saber, os relógios, o sobrado e as voçorocas remetem à dinâmica do tempo. Os elementos do barroco parodiados pelo autor já na primeira parte, são imagens que constroem a casa que, por sua vez, remete à questão da linguagem. O narrador coral, à moda da tragédia grega, interpreta os eventos. Segundo o próprio autor, a leitura do livro como tragédia, mais do que como romance, será mais proveitosa. Os mortos de Rosalina são comparados aos mortos de Antígona.


O romance barroco concebe a verdade como plurissignificativa. Daí a destruição de todas as formas de dominação, todos os dogmas. A polifonia barroca faz com que não se estabeleça uma unidade unitária, mas sim, dual, pois, ao apresentar diversas visões de mundo, interage na composição da obra, de modo que o todo se relaciona com as partes em uma estrutura lúdica de composição. O jogo das vozes que compõem a narrativa forma o multiperspectivismo, de modo que não há fatos, apenas versões. Cada versão é uma nova história, uma nova realidade ficcional.
Em Ópera dos Mortos1 encontra-se a radicalização da estrutura lúdica do barroco, o que promove a isomorfia entre forma e conteúdo. Já no primeiro bloco tem-se uma teoria do barroco, quando o narrador (coro) descreve o sobrado. As mudanças, os vários ângulos, a ilusão, o jogo de movimento e repouso, fazem da obra também um meta-romance. Ao parodiar o barroco, Autran Dourado une linguagem, estrutura e forma; para ele, o barroco "não é apenas um conceito histórico, capítulo da história da arte, mas alguma coisa viva e atuante, que me estimula na elaboração da minha própria criação literária" (PRMC, p.37).
A partir de Hatzfeld (1988), observamos que o barroco é um estilo marcado pela tensão harmônica de contrários. Como arte da contra reforma, o barroco revela não a dúvida, mas a própria unidade dual do ser humano: corpo/espírito, luz/sombra, sagrado/profano, antropocentrismo/teocentrismo, entre outras. Há um forte apelo para os sentidos e para a experiência humana - por isso Autran Dourado abre Ópera dos Mortos com a frase: "O senhor querendo saber, primeiro veja" (p.1) - isso é propiciado pelo jogo de contrários do barroco e o aparente exagero. Ao observar as imagens barrocas, sejam elas literárias ou pictóricas, o espectador adquire novos pontos de vista, novos horizontes, porque elas não podem ser interpretadas (não se pode sabê-las) com o ponto de vista preexistente.
Na linguagem literária, tal apelo se mostra nas imagens ambíguas produzidas pelas metáforas e oximoros, mas essas figuras surgem aqui como produtoras de significado, o que vale dizer, de mundo, e não como mera ornamentação da linguagem. Para saber é preciso ver, sentir, mas esse saber nos é dado pela linguagem poética que, por ser originária, traz uma concepção de mundo e é a base de uma experiência do sagrado. Em épocas remotas, anteriores à escrita, acreditava-se que a palavra, uma vez pronunciada, tinha o poder de trazer consigo a coisa nomeada. É nesse sentido que Jaa Torrano, em sua introdução à Teogonia de Hesíodo, fala do poder simultaneamente ontopoético e ontofânico da palavra, pois "[este poder] faz o mundo e o tempo recuarem à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência de vida com que vieram à luz pela primeira vez" (pp.19-20). Na Teogonia "o mundo, os seres e os Deuses (...) e a vida aos homens surgem no canto das Musas do Olimpo, canto divino que coincide com o próprio canto do pastor Hesíodo, a mostrar como surgiu e a fazer surgir o mundo, os seres, os Deuses e a vida aos homens" (p. 20). Atualmente o caráter sagrado da palavra permanece quando ela é símbolo, e não signo. O símbolo não representa, mas significa aquilo que é. Dessa forma, linguagem e ser não se separam, são imanentemente recíprocos, pois ser é aparição, manifestação, o que se dá através das Musas, filhas da Memória, detentoras da linguagem, ou seja, as Musas dão a linguagem ao homem, que dessa forma se manifesta com tal, o que implica dizer que o ser só é na linguagem.
Em Ópera dos Mortos a ambigüidade característica do barroco radicaliza-se, a ponto de unirem-se casa e personagens barrocas (o sobrado e Rosalina). Os elementos do barroco, parodiados pelo autor já na primeira parte são imagens que constroem que construirão a casa:

Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas sensação, imagine; veja a ilusão do barroco, mesmo em movimento é como um rio parado, veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo veja: a casa ou a história. (p.6)

O rio (repouso e movimento), o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, constroem a casa, a habitação das personagens principais (lembramos que o próprio sobrado é personagem). Com Martin Heidegger (2002), aprendemos que habitar é preservar a quadratura (céus/terra, mortais/imortais) onde os mortais se demoram, isto é, nas coisas. Para Heidegger, a coisa não é um mero objeto do qual um sujeito (homem) se serve. Antes, é o que se mostra em sua essência. A serventia de que o homem dota a coisa acaba ocultando seu ser coisa, portanto, é somente depois de despojada das características de objeto que a coisa pode aparecer como coisa. E é por estar despojada e revelar sua essência que a coisa reúne a quadratura e garante sua tensão. A coisa se relaciona com o habitar porque funda um lugar a partir daí abre espaço ao habitar humano. O habitar de Rosalina é feito desse jogo de contrários que compõe o sobrado. É a partir desse jogo que Rosalina é. O sobrado é uma coisa que faz com que a quadratura se manifeste em um jogo de movimento e repouso. Rosalina é a união permanente entre Lucas Procópio e João Capistrano porque só como só como essa unidade dual pode ser.
Heidegger também demonstra que, etimologicamente, habitar significa tanto reunião e resguardo (da quadratura) como construção de coisas. Ora, construir é fazer: poien em grego, poiesis. Assim, o sobrado é também símbolo da linguagem, pois ao se habitar o sobrado, constrói-se a linguagem, que é a casa do ser. Assim, a linguagem barroca não está em Ópera dos Mortos apenas com a função de descrever o sobrado. Não se trata de falar sobre a casa, mas de construí-la com a única linguagem possível. Em outros termos, só a linguagem plurissignificativa do barroco pode construir a história de uma personagem plural como Rosalina.
Rosalina, como personificação do sobrado (e da linguagem que ele simboliza) é também metáfora ou imagem da memória dos mortos que compõem o sobrado. Memória, filha do Céu e da Terra, é quem detém o domínio do Visível e do Invisível, pois é ela que decide entre esquecimento e lembrança, ocultamento e aparição, velamento e desvelamento. Memória mantém os seres na luz da Presença, enquanto se dão como não-esquecimento, isto é, alétheia, conforme Jaa Torrano (1991, p.70). Rosalina é quem mantém Lucas Procópio e João Capistrano presentes para a cidade que deseja esquecê-los, mas não pode. A cena do enterro de João Capistrano mostra que Rosalina, contrariando o desejo da cidade, não enterrou seus mortos:

Foi assim que Rosalina fez, todos os gestos medidos: viu o pai no caixão, o corpo coberto de flores, cruzou os dedos como quem ia rezar mas não rezou. Súbito se voltou para onde tinha vindo. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como desceu. (OM, p. 29)

Rosalina não enterrou o pai, não cumpriu o ritual esperado pela cidade. Essa foi uma das formas de mantê-los presentes, pois o sobrado é Lucas Procópio e João Capistrano, mas Rosalina é a memória dos dois. Entende-se assim porque Autran Dourado compara, na sua Poética de Romance: matéria de carpintaria, os mortos de Rosalina aos mortos de Antígona. A lei de Rosalina é a lei dos deuses ("Não esqueço, ninguém deve esquecer". OM, p. 32) que se opõe à lei da pólis. Enterrar João Capistrano significaria enterrar sua briga com a cidade, mas para Rosalina isso significaria tirar a dignidade do pai, assim como não enterrar Polinices significaria, para Antígona, tirar a dignidade do irmão.
A questão da memória está visceralmente ligada à do tempo. São símbolos do tempo em Ópera dos Mortos os relógios e as voçorocas.
Os relógios, embora parados referem-se à dinâmica do tempo. Para Autran Dourado, o tempo não é concebido como mera sucessão de passado, presente e futuro, mas uma ciranda, uma roda. É continuidade e contigüidade, não causalidade, pois, segundo Torrano (1991, pp.71-72) é composto de "momentos imóveis, presenças permanentes em si mesmos". Isso implica a recíproca imanência entre todas as questões aqui apresentadas: linguagem, ser, memória e tempo.
O primeiro relógio que pára em Ópera dos Mortos é o comemorativo da independência que João Capistrano pendura na parede da sala do sobrado no início de sua briga política, depois o relógio armário, quando da morte de sua esposa, Dona Genu e, por fim, o relógio de ouro, parado por Rosalina no dia da morte de João Capistrano. Os relógios parados permanecem presentes para marcar o tempo contínuo dos mortos. Mesmo mortos, continuam a operar, marcam tanto a vida do sobrado e de Rosalina como a da cidade. Mesmo em todo seu isolamento Rosalina e o sobrado participam da vida da cidade. Isso pode ser observado em várias passagens pela fala do narrador, como no segundo bloco, quando conta ao observador sobre a chegada do relógio armário ao sobrado:

E vinha gente de longe regalar a vista (...) deliciar os ouvidos com a música prateada das pancadas finas, aquela música que mais tarde, quando o relógio parado, ia marcar as horas do nosso remorso. (OM, p. 17)

Observamos que, no momento da narração, o relógio já estava parado, mas sua música ainda se fazia ouvir.
Os relógios, mesmo parados, estão em movimento, mostrando que passado, presente e futuro não se sucedem, mas se imbricam:

Foi quando o coronel João Capistrano Honório Cota morreu. Tudo foi de novo, igualzinho relógio de repetição.
(...)
Tudo repetido, a gente assistia tudo de novo pra trás. De novo se voltava feito numa fita-em-série onde o herói ficou em perigo e a gente não sabia como é que ele vai sair para continuar suas cavaleiranças. A gente esperava que a cena se repetisse para ter uma outra solução mais conforme, não a que ficou parada, sugerida. (O.M., pp. 29-28)

Entretanto, a cena não tem solução, pois isso significaria parar a roda do tempo.
A morte de D. Genu marca o início do silêncio entre o sobrado e a cidade, e a de João Capistrano o estabelecimento desse silêncio, mas o silêncio não cessa a comunicação, pois o sobrado determina, em certos aspectos a vida da cidade, como observamos acima.
Os relógios também se imbricam na personalidade de Rosalina – o que não é nada mais nada menos que o imbricamento das questões do tempo, da linguagem e da memória:

Mas ela não podia mexer nos relógios, não devia nunca mexer naqueles relógios. Os relógios eram um quebranto, parados eles batiam como de noite aquele coração penado no meio da casa (...). (O.M, 41)

O tempo aqui é como um rio: mesmo parado continua em movimento. Rosalina não pode mexer nos relógios porque não pode mexer no tempo, mas como memória pode fazer com que aquilo que já não é retorne a ser, pode tornar o tempo uma ciranda que gira permanentemente e que se transforma também no tempo da cidade. O sobrado, símbolo da linguagem, é o que guarda esse tempo-ciranda e, em seu silêncio, fala à cidade.
O trabalho do tempo, que transforma as coisas em ruínas é simbolizado pelas voçorocas. Elas provocam estranhamento em que as vê porque traz à tona aquilo que é a única certeza do homem, mas que lhe é absolutamente desconhecido: a morte. A dificuldade de encarar as goelas de gengivas vermelhas das voçorocas é a dificuldade de encarar a finitude humana, o limite. Por isso elas assustam tanto Juca Passarinho, sempre alegre e falante: elas o colocam de frente para o nada e provocam a experiência do silêncio:

Já vi aluvião, erosão virar voçoroca, disse José Feliciano, mas deste tamanhão, nunca na minha vida!
Desta vez não mentia, não exagerava no elogio. Tinha até medo de olhar aquelas goelas de gengivas vermelhas e escuras (...). Que coisa mais medonha, seu Silvino. Parece que não acaba mais essa começão de terra. Coisa do diabo, mais parece esta fome toda de terra. (O.M., p. 60)

As voçorocas remetem, assim como os relógios, remetem à dinâmica do tempo: são a própria presença do passado, do que já não é naquilo que é (presente), mas não indicam futuro a não ser a morte, a destruição. Não há futuro para a cidade, assim como não há futuro para Rosalina. Trata-se de uma cidade marcada pelo trabalho – ópera – dos mortos, que Rosalina/memória cuidou de manter presentes tanto para si como para a cidade. Tudo é determinado pelo sobrado e seus mortos. Mesmo em ruínas, é o sobrado que se mostra ao narrador e a partir dele desenrola-se a narrativa. As voçorocas estão para a cidade assim como os relógios estão para o sobrado: "O sobrado era o túmulo, as voçorocas, as veredas sombrias" (O.M., p. 99).
O narrador de Ópera dos Mortos também contribui para a concepção de tempo como ciranda, continuidade e contigüidade. A obra é narrada sob vários focos narrativos, o que implica dizer que não há um, mas vários narradores. Por ser segundo o autor, uma obra mais trágica do que romanesca, destacamos aqui o narrador coral, que interpreta os eventos à moda do drama ático. Já no primeiro bloco, observa-se a presença do coro, como nos parênteses do fragmento abaixo:

Um recuo no tempo pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa (não, oh tempo, pare as suas engrenagens e areias, deixe a casa como é, foi ou era, só pra gente ver, a gente carece de ver; impossível com a sua mediação destruidora, que cimenta, castradora); esqueça por um momento os sinais, os avisos surdos das ruínas, dos desastres, do destino. O.M., p. 2

Principalmente a partir do bloco 8, "A Semente no Corpo, na Terra" (Rosalina grávida), quando, ainda segundo Autran Dourado, Rosalina fala, mas sem discurso, só presença, tem-se o discurso do coro. É ele que interpreta as muitas Rosalinas, que Juca Passarinho não consegue entender:

Mas o corpo era o mesmo, com dificuldade ele via o mesmo corpo onde as duas se alternavam. O corpo sem a noite continuava a existir? Era possível só a luz, a escuridão total?
Ele [Juca Passarinho] se perdia em pensamentos absurdos, não esses, outros – feitos de imagens concretas (...) mas que desses pensamentos se aproximava na sua luta incessante de querer entendê-la para repousar em duas Rosalinas(...) que tinham de comum entre si o traço de união, o corpo...
(...)
E de repente descobriu com espanto: ela era três e não duas. A dona Rosalina que existia entes de sua chegada ao sobrado e continuou a existir até aquela noite (...), a Rosalina das noites em fogo e sangue, em fúria consumida, e a dona Rosalina diurna de agora, perto de quem humildemente ele ficava (...) Essas distinções eram demais para ele, homem simples. (O.M., p.172-173)

E assim o agregado desiste de entendê-la e passa a aceitá-la, mas é o coro quem interpreta, porque um narrador onisciente seria contraditório com a concepção de linguagem dessa obra que barroca que dialoga com a tragédia. Se a tensão harmônica dos contrários é a base da narrativa, não pode haver certezas absolutas exclusivas de um narrador.
Ópera dos Mortos interpreta as questões linguagem, memória, ser e tempo em uma perspectiva deliberadamente ambígua. A obra recusa os conceitos maniqueístas e concebe a unidade na dualidade. A linguagem barroca e trágica revela a imanência recíproca das questões abordadas em sua originalidade. Nesse sentido é um "acontecer poético" e cria mundo, mas não um mundo paralelo ao chamado "real". O mundo magistralmente criado em Ópera dos Mortos é real naquilo que tem de inaugural: a paródia de elementos barrocos e trágicos interpretando originalmente as questões que inquietam a humanidade desde seus primórdios.
Bibliografia:


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